terça-feira, 9 de junho de 2015

O indivíduo "se faz" na infância

Esses dias estava num lugar onde pessoas comentavam ipsis litteris que pessoas 'baixa renda pensam assim'. Hã, o quê? Eu realmente ouvi isso? Gente, no estado avançado de desenvolvimento do ser humano tem certas coisas que me doem aos ouvidos, por exemplo, a catalogação do ser humano em baixa renda, alta renda ou qualquer outro tipo de identificação rotulatória que seja em tom depreciativo. Não concordo com as cotas nas universidades, e já explico o porquê. Também não quero ser chamada de racista se sair na rua com uma camiseta escrita 100% branco, tenho orgulho da minha cor, assim como teria se fosse parda ou negra.
Eu não sou a minha cor, ou o dinheiro que não tenho, ou a minha opção sexual. O 'ser' é muito além disso. Tudo bem, concordo, é muita divagação, mas é muita leitura, pensamento e raciocínio envolvido.
Cotas para negros porque? Também estudei em colégio público, também não tinha dinheiro para pagar a universidade. Na época que cursei direito não tinham benefícios para quem não fosse ao menos pardo... E dessa vez me senti prejudicada.
Tenho orgulho de dizer que sim, cresci em um lar sem dinheiro. Meu pai trabalhava para pagar as contas (que muitas vezes atrasavam) e para comer. Minha mãe trabalhava cuidando da casa, costurando para outras pessoas, decorando festas infantis, fazendo unhas e cabelo para a vizinhança para conseguir também 'uns trocos', além de cuidar de três crianças.
Estudamos em colégios públicos e privados. Muitas vezes quis ter brinquedos, mochilas, bonecas que minhas amigas tinham, mas eu não podia, e entendia isso. Na medida do possível, meu pai e minha mãe nos davam o que cabia no bolso, mas não lembro de ter passado um Natal, Páscoa ou aniversário sequer sem comemorar.
A educação que tivemos foi exemplar. Ouço ainda hoje minha mãe dizer quando sinto algo ruim por alguém: "Adri, te coloca no lugar. Cada um age como melhor pode", entre tantos e tantos ensinamentos diários que tive na infância.
Finalmente quando estabilizamos um pouco financeiramente, meu pai tinha um carro e comprou um terreno. Íamos construir a tão sonhada casa própria, pois morávamos em algumas peças nos fundos da casa da minha avó. Já tínhamos o projeto nas mãos. Lembro de ir criança aos domingos no terreno ajudar a juntar os tijolos e madeiras que a construção anterior que lá havia tinha deixado.
Então minha irmã mais nova, com apenas alguns meses ficou doente. Muito doente. Quarenta e cinco dias de hospital em outra cidade, junta médica, pneumonias reincidentes, alergia a leite, asma e tudo o mais que se possa imaginar ela tinha, a morte era questão de tempo. Foi-se o terreno e alguns sonhos. Ficou o ensinamento da vida, mais uma vez, do que realmente importa.
Ainda hoje lembro do cheiro do poste de madeira que usávamos para raia do esconde esconde da Rua São Carlos; da torrada com batida de banana nas tardinhas de verão na área de casa, comendo rápido pra brincar mais um pouco; do gosto da pitanga do pátio e do cheiro das folhas das árvores que eram as comidas de brincadeira nas panelinhas de plástico, dos amigos daquele tempo que nunca mais vi, mas tenho no meu coração. Lembro e tenho saudade de tanta coisa que a lista seria imensa. Mas lembro principalmente que foi tudo maravilhoso e exatamente como tinha que ser! E gente baixa renda pode ser gente alta renda um dia, pode ser a professora dos nossos filhos, pode ser a pessoa que vai mudar muitas vidas por aí.

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